personificando




[sobre pessoas e narrativas;
sobre crônicas do cotidiano.]

domingo, 1 de abril de 2012

Seu [Santo] Severino

-Severino Ramos, as suas ordens!

Era assim que ele se apresentava. Assim, como quem quer nada; como se quisesse dar pause no momento para o que precedia essas palavras:

- E você não notou nada não, milha filha?

E enquanto aquele rosto cansado, maltratado pela vida, procurava um milésimo de esperança, e demonstrava toda a sua expectativa diante da resposta esperada, os seus olhos iam se comprimindo atrás do óculos de lentes arranhadas, enquanto um sorriso ia se abrindo aos poucos, aos pingos, deixando em clarividência as rugas que a vida deixou de presente para ele, nele.

-É nome de santo... S-E-V-E-R-I-N-O -R-A-M-O-S. Gostou?

E enquanto aquele táxi se arrastava pelas ruas da cidade, naquela noite onde o pranto fez-se em lágrimas, o borrão da luz ia se misturando com as palavras de seu Severino e seus sessenta e quatro anos de experiência.

- Esse ano completo 46 anos de táxi, minha filha

É, ele tinha nome de santo e também era taxista nas horas vagas.

Vindo de uma família humilde, começou a 'lida' da vida cedo. Foi carregador de feira, engraxate, flanelinha, e milhares de outras coisas, até encontrar o seu táxi. Ah, segundo ele também foi sonhador. Passou diversas horas sonhando em como seria se tivesse uma televisão em casa.

- Eu já vi de tudo nessa vida; sofrimento, rancor, remorso, alegria, tristeza... tudo aqui dentro desse espaço 'aqui'... é muita coisa que acontece aqui (e, nesse momento, apontou para ele mesmo.. )

E foi ali também que perdeu a audição do lado esquerdo, num acidente sofrido anos atrás; foi ali que teve a notícia de que seu único filho estava a caminho e foi ali, também, que encontrou o amigo mais querido, companheiro de todas as horas.

- Esse mundo de hoje é diferente demais de antigamente... eu, considerado 'analfabeto', tive esse amigo aqui pra me ajudar com minha família (passando a mão no volante do carro); se 'num' fosse ele, sei nem o que seria do meu filho...

E seu Severino conta como foi ensinar o filho o prazer de se ter aquela profissão, aquela amizade com aquele táxi, que, segundo ele, 'é mão e contramão'. E depois explica:

- Eu ensinei tudo a ele.. limpar, aspirar, cuidar de cada coisa..motor, pneus, bancos, tudo, tudo..essa é a minha herança...é a única que eu posso deixar.


E foi assim que ele falou sobre o Recife, sobre o tempo de 'antigamente', sobre viver, morrer, sobre histórias da vida real que aconteceram bem ali, naquele banco onde eu, maravilhada, me encontrava. Confesso que dei mais uma volta no quarteirão de casa para ter coragem de me despedir dele.

- Ah, é aqui? Eu converso tanto que nem vi.. e você calada aí, me deixando falar sobre a vida... eitaa... mas é preciso uma vida inteira para se falar sobre a vida... e outra pra esquecer as coisas dela.. e a que a gente tem é muito curta..

Sorri, agradeci e fiquei ali parada, um instante, vislumbrando aquele rosto.
Paguei, saí e continuei a observar o táxi indo embora.

Lá ia ele, voltar para a vida.
E lá ia eu, seguir com a minha.